segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Resenha Crítica - Juliana Chrisóstomo



Anjo Negro, de Nelson Rodrigues.

resenhado por Juliana Chrisóstomo de Almeida

Nelson Rodrigues nasceu em 23 de Agosto de 1912 em Pernambuco e faleceu aos 68 anos no Rio de Janeiro. Foi um importante jornalista e escritor brasileiro e considerado um dos mais influentes dramaturgos do Brasil. Dentre seus trabalhos no teatro, destaca-se “Mulher sem Pecado” e “Vestida de Noiva”. “Anjo Negro” é uma peça dramática que aborda o racismo e as mazelas da sociedade da época.
 Os personagens são: Ismael, Virgínia, Elias, Ana Maria, tia, primas, criada, coveiro de crianças e o coro das pretas descalças.
A peça é composta substancialmente por três atos. O primeiro quatro desse ato compreende a morte do filho de Ismael e Virgínia e a vista de Elias à casa de Ismael. No segundo quadro, Virgínia conhece seu cunhado Elias. No segundo ato, Virgínia se relaciona sexualmente com Elias que é o assassinado por Ismael. O terceiro e último ato compreende o nascimento de Ana Maria, filha de Virgínia e Elias; a descoberta do relacionamento do padrasto com a menina e o fim trágico em que Ana Maria é assassinada pelo casal, Virgínia e Ismael.
O espetáculo tem início já com um fato trágico, exatamente como no texto de Nelson: a atriz que interpreta a personagem “Senhora” narra o falecimento dos filhos negros de Ismael e de Virgínia, e apresenta as possíveis hipóteses que causaram a morte das crianças. Ao final da narração, é expresso o caráter racista da sociedade da época na seguinte frase: “ - A branca também desejou o preto! - Maldita seja a vida, maldito seja o amor.” Através dessa frase, é possível perceber o cúmulo do pensamento daquelas pessoas. Elas atribuíam ao relacionamento entre uma branca e um preto a causa da morte daquelas crianças.
No texto de Nelson, há a descrição detalhada da visita de Elias à casa do irmão adotivo, Ismael. Aí revela-se a personalidade má do médico negro que demonstrava tamanha inveja do primo por ele ser branco e, por tal razão, o maltratava fisicamente na infância. Na apresentação da peça, esse trecho foi retirado, o que não prejudicou a compreensão da história, visto que a explicação sobre o relacionamento de Ismael e Elias foi explicado em momentos posteriores do texto e da encenação. Elias é, então, mantido hóspede naquela noite, sob a condição de não sair do quarto de forma alguma. Objetivo: não ver Virgínia.
Na sequencia, ocorre a cena, acompanhada de um musical, em que Virgínia se arruma no quarto. Para a composição dessa cena, foi montado um pequeno cenário com penteadeira e iluminação avermelhada. A peça contou com a participação de uma cantora maestra extremamente afinada que também contribuiu com seu toque de piano. Enquanto Virgínia, sentada ao lado da penteadeira, se maquiava e se arrumava, a canção era exibida. De repente surge Ismael que discute com Virgínia e tenta agarrar a esposa à força. Virgínia suplica para que não tenham relações sexuais, visto que eles deveriam estar em luto por causa da recente morte do terceiro filho deles. Nelson demonstra domínio de linguagem e ideias quando Virgínia afirma que gerar um novo filho naquele momento era como fazer com que o filho morto voltasse ao seu ventre.
Durante a discussão do casal, reforça-se ainda mais a repugnância de Ismael por sua própria cor, ele mantém Virgínia presa em casa e a proíbe de ter qualquer outra imagem a não ser a dele, para que ela não deseje outro homem. A razão é que ele se menospreza por ser preto.
Através das palavras de Virgínia e Ismael e do flashback, os produtores da peça conseguem resgatar o texto de Nelson que narra a história desse casal. Virgínia se relacionou com o noivo de sua prima que, por tal razão, suicidou-se. A mãe da prima traída ordena a Ismael que tome Virgínia à força, e ele o faz. Não tendo mais saída, Virgínia se casa com Ismael.
O passado, assim como as características de cada personagem é desvendado gradativamente ao longo do texto e da encenação. Esse ponto foi bem explorado no espetáculo que sintetizou as cenas cujos assuntos se repetiam. É dessa forma que descobrimos que Ismael é preto, mas é um médico; e que a sociedade da época via o negro como uma espécie de doença terrível.
Virgínia descobre, através da criada, que há outro homem em sua casa, o irmão adotivo de Ismael. Sua curiosidade se aguça ainda mais por saber que ele é branco.  Devido a ordens do patrão, a criada se recusa a permitir que ela o veja, mas Virgínia chantageia a serviçal, o que demonstra sua mesquinhez. Virgínia ao descobrir que Elias é cego fica ainda mais atiçada para conhecê-lo. Ela sobe até o quarto em que ele estava e o seduz.
O papel de Virgínia foi interpretado por duas atrizes. Como se tratava de uma leitura cênica, os produtores foram bastante inteligentes, pois, dessa forma, deram a oportunidade de o elenco mostrar seu brilho e permitiu que os atores descansassem.  As atrizes atuaram muito bem nas cenas que lhes foram designadas. A segunda atriz que interpretou Virgínia foi perfeita para o papel. Ela conseguiu expor, através de suas falas, os efeitos cômicos e coerentes das construções linguísticas de Nelson. Conseguiu nos mostrar a habilidade do escritor em construir uma obra tão bem articulada e inteligente.
Virgínia chega, então, ao quarto de Elias e constata que ele é realmente branco. Fica enfeitiçada ao perceber sua semelhança com o noivo de sua prima pelo qual afirmou ter sido realmente apaixonada. A partir daí, o público sorri veementemente com a comicidade do texto e da encenação. Apesar do caráter cômico, a crítica e a exposição dos crimes dos personagens são notáveis: Virgínia afirma que não haveria pecado algum em se deitar com Elias. Esse pensamento, assim como outros momentos do texto, acabam confundindo o leitor sobre se os personagens seriam realmente maus, pois parece que todos os crimes e pecados (assassinato, adultério) eram cometidos sem que os autores percebessem a gravidade dos mesmo. Os personagens usam o nome de Deus e da religião, mas pecam o tempo todo.
O espetáculo dispõe de criatividade nesse momento da peça. Para retratar a cena em que Virgínia e Elias fazem amor, foi utilizado um pano branco e uma luz incidiu sobre o mesmo, deixando transparecer apenas a sombra dos amantes. Tudo isso acompanhado pela música da cantora maestra que novamente se saiu muito bem.
A tia de Virgínia cuja filha se suicidou, chega à casa, e, ao ver Virgínia saindo do quarto de Elias após longo período, descobre o relacionamento dos dois. A tia fica completamente entusiasmada por encontrar a oportunidade de se vingar da sobrinha. Na encenação, a personagem da tia é a mesma que interpretou a primeira cena de Virgínia no quarto se arrumando.
Quando Ismael chega à casa, Virgínia que antes o repugnava, passa a afirmar que o ama e que não permitirá que outro filho morra, mas implora que ele não fale com a tia. Entretanto, esta interrompe a conversa do casal e conta a verdade. Virgínia, almejando ter um filho de Elias e sabendo da cólera do marido, prefere a morte de Elias ao invés da morte do filho. Assim, ela instiga Ismael e ele mata Elias com um tiro no rosto.
A impunidade parece ser algo também presente naquela sociedade, pois os assassinatos que Virgínia cometera com seus próprios filhos, assim como a morte de Elias parecem soar como algo natural e normal. Ninguém aparece recebendo punição por isso. É revoltante também a atitude de Ismael em não impedir a esposa de cometer os crimes. A crença dessas pessoas era de que se fosse algo contra o negro não haveria pecado, todos os crimes eram justificáveis. Por exemplo, a morte das crianças se devia ao fato de elas serem pretas, precisavam ser eliminadas. O adultério de Virgínia com Elias não tinha problema, porque seu marido era negro e o adultério foi cometido com um branco, Elias. Até para a morte de Elias encontrou-se uma justificativa: se alguém teria que morrer, que fosse ele, ao invés da criança, já que todos os outros filhos de Virgínia eram pretos e ela precisava ter um filho branco. Os personagens parecem apresentar distúrbio de personalidade: ao mesmo tempo que dizem amar, matam e traem.
É importante ressaltar que os trajes dos personagens eram, de modo geral, pretos, tanto os de Virgínia quanto os de Ismael e os da tia. O ator que protagonizou Ismael não era negro, talvez ele tenha usado trajes pretos para melhor representar seu papel. Porém, isso descaracterizou um pouco o texto propriamente dito o qual afirma que Ismael se vestia distintamente, contudo sempre usando roupas brancas. Acredita-se que essa seja outra demonstração da repugnância que Ismael tinha de si: até as roupas precisavam ser brancas para esconder sua cor.
Após a sequencia de tragédias na vida de Ismael, morte do filho, traição da esposa e o assassinato do irmão, há uma cena que não consta no texto, mas que foi inserida na peça, em que Ismael toma banho como se estivesse desejando rançar seu coro, sua pele, atribuindo à sua cor o motivo de todas as suas desgraças. Para a composição dessa cena, houve música e o ambiente foi obscurecido com a emissão de uma luz mais ofuscada. O ator se lavava em uma banheira. Nessa cena, o ator se despe completamente, o que foi desnecessário. A única intenção pareceu ser chocar. Nelson pretendia mostrar as mazelas da sociedade e se fosse para chocar não seria com nudez ou sexo, seria com o racismo. A peça já tinha conquistado o público que não piscava os olhos, a nudez do ator apenas chocou o público.
Na sequencia da história, Virgínia fica grávida de Elias e nasce Ana Maria, uma mulher ao invés de um homem como esperava a mãe. A história continua revelando atrocidades e mais atrocidades. Virgínia parece desejar o filho como a um homem e Ismael desejava Ana Maria como a uma mulher e a tem como tal. Além disso, no final da peça constatamos que Ismael cegara Ana Maria assim como fez com seu irmão Elias. Ele foi capaz de cegá-la quando ela era ainda um bebê, para que ela não visse sua cor e o amasse. Como Virgínia desejava um filho homem e veio uma mulher, ela não impediu Elias de cegar a menina. Ismael decide ir embora com Ana Maria e abandonar Virgínia, porém esta, mesmo sempre tendo odiado o marido, ao ter seu orgulho ferido e se sentir ameaçada pela própria filha, consegue reverter a história, convencendo Ismael de matar a menina, fato que consolida a crueldade do casal.
A atriz que interpreta os três papéis: o de Virgínia, o da tia e também o de Ana Maria relevou grande talento e diversidade, pois conseguiu ser dramática (Virgínia na primeira parte da peça), engraçada e fria (papel da tia) e por fim, infantil (Ana Maria). O vestuário atribuído à atriz também foi coerente com Virgínia (estava sensual e maquiada); como a tia velha (com lenço no cabelo); e como Ana Maria que trajava roupinha clara e singela, além de ter o cabelo trançado em duas partes, como se faz nas crianças.
O nome da peça também nos intriga e poderá ter outras interpretações, mas uma delas pode se referir aos anjinhos negros, ou seja, aos filhos assassinados por Virgínia e por Ismael. Ressalta-se ainda que mesmo se tratando de uma leitura cênica, os atores leram pouco e, mesmo lendo, demonstraram total propriedade das falas.
Percebe-se, dessa forma, que “Anjo Negro” é uma riquíssima obra de Nelson Rodrigues que exibe seu potencial em expor o ser humano não como totalmente bom ou totalmente mau, mas como uma essência confusa. O espetáculo foi capaz também de materializar os diálogos bem construídos por Nelson e revelar o talento dos atores e de toda a produção.

Análise do grupo


Nelson Rodrigues contribuiu decisivamente para o teatro moderno no Brasil. Suas obras
espelham a realidade, por mais dura e pervertida que fosse. Eis aí o principal motivo de ter a
censura e a crítica o acompanhado durante todo o seu percurso artístico.

Seu talento é inegável, aos treze anos já era repórter policial no jornal de seu pai. Sua
versatilidade artística é abrangente, contempla romances, contos, crônicas, várias peças
teatrais além de telenovelas e até filmes.

As tragédias de sua vida e os inúmeros romances que vivenciou tornaram-se elementos que nas mãos desse brilhante autor se materializaram na riqueza cultural que graças a ele, é autenticamente brasileira.

A vida e a obra de Nelson refletem seu pensamento crítico, o seu temperamento era inclinado a gerar polêmica e outros sentimentos, como raiva, indignação e admiração. Estudar as obras de Nelson censuradas  nos leva a refletir, percebemos que muitos dos problemas tratados ainda são vividos atualmente. Nelson não deixa de ser atual, cita e critica problemas e situações que englobam temas universais, que ainda afligem nos dias de hoje ou que pelo menos refletem em nossa vida.

Percebemos estudando Nelson que a maior arma que podemos usar para combater problemas sociais, como  o preconceito, prostituição, violência e a própria censura, é a PALAVRA.

Nelson Rodrigues é o retrato do Brasil cultural.

"Senhora dos Afogados”, “Perdoa-me por me traíres”, “Boca de Ouro” e “Anjo Negro” foram apenas algumas das obras de Nelson que foram censuradas. Nelson dizia: “A censura me discrimina”. Mas não teria razão a censura? Afinal, é mais fácil esconder as podridões sociais que enfrentá-las!


  A inteligência e perspicácia do célebre autor desafiavam a censura e enfrentavam o público. Com aparições conturbadas e temas polêmicos, Nelson não tinha medo de apresentar sua obra, nem de ser acusado de apologia a graves crimes, como: homicídio, infanticídio, incesto, estupro e atentado ao pudor. Chegou várias vezes a chamar o público de burro, como quem provocava para obter uma reação, qualquer que fosse, mesmo que violenta ou negativa. O que para ele importava era ver alguma reação, que para Nelson representava a quebra da acomodação em que vivia a sociedade.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Obras teatrais





























Revista Brasilis

 Linha do tempo de Nelson Rodrigues
http://revista.brasil.gov.br/personagens/nelson-rodrigues/linha-do-tempo/linha-do-tempo

Entrevista com Nelson Rodrigues em 1974


“Teatro não ter que ser bombom com licor”
Jornal da Tarde   07/12/1974
Nelson Rodrigues continua: “Teatro tem que humilhar, ofender o espectador”. Uma opinião que foi gravada no Rio, quarta-feira passada, para o Museu do Teatro. E que faz parte de um longo depoimento que você vai ler agora.

“Nasci no dia 23 de Agosto de 1912, no Recife. Vim para o rio com quatro anos. Meu pai tinha se mudado para o Rio, perdeu o emprego e ia voltar para Pernambuco. Minha mãe vendeu as jóias, telegrafou a meu pai: “Vou com as crianças”. Pegamos um vapor. Por esse gesto de minha mãe, eu me tornei carioca.
“No Rio almoçávamos numa pensão. A mesa era um caixote de querosene. Aos seis anos, fui para escola, na rua Alegre. D. Rosa, a professora, era uma senhora de narinas apertadas. Eu era pobre, levava uma banana de merenda e me sentia orgulhoso. No recreio, um garoto desembrulhou um sanduíche de ovo, que humilhou e liquidou minha banana. Não jantávamos. A comida única era o aipim.
“Fui o garoto mais puro do mundo. O sexo produzia em mim um sentimento de culpa. Eu sentia atração, mas não ia à ação. Me apaixonei por todas as professoras. Mulher feia não existia para mim. Eu não disse um palavrão até os dez anos, seria perder minha alma.
“Aos 13 anos me tornei repórter de polícia do jornal A Manhã, que meu pai dirigia, com o belo ordenado de 30 mil réis. Aos 14 anos escrevi A Tragédia de Pedra, que foi um sucesso. Fiquei deslumbrado comigo mesmo.
“Meu irmão Roberto foi assassinado quando tinha 17 anos. Não que tivesse culpa. A assassina declarou no jornal: “Vim para matar Mário Rodrigues, ou um de seus filhos”. Como o criminoso é secundário, nulo, diante da vítima. É como se fosse um marginal do acontecimento. Ninguém se interessou pela criminosa. E esse assassinato está marcado no meu teatro, nos meus romances, nos meus contos. Minha biografia está refletida na minha obra. Todo o autor é autobiográfico e eu sou. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida.
“TODA UNANIMIDADE É BURRA”
“Esse crime me mudou inteiramente. O fato de um sujeito morrer por ser filho do meu pai, que por sua vez não tinha nada com o peixe, me deu horror da opinião pública. Toda unanimidade é burra. A maioria geralmente está errada. Tenho horror de eleição. Querem que quarenta milhões de pessoas julguem como se fossem Aristóteles ou Platão. Uma das maiores peças do mundo é um Inimigo do Povo, de Ibsen. O protagonista diz, no final, que o grande homem é o que está mais só. Por isso brinquei com minha classe teatral, quando andava em comícios, assembléias e passeatas. Sou o que está mais só.
“Depois da Revolução de 30, empastelaram o jornal do meu pai. Meu pai havia morrido um mês e tanto depois da morte do meu irmão. Ele previa que ia morrer de paixão. Eu e minha família começamos a passar fome. Uma vez, das entranhas do arroz e do feijão saiu uma barata. Quem pensa que eu não ia comer é um alienado total, nunca passou fome. Comi sem o menor escrúpulo, pois não tinha comido nada naquele dia.
“Caí doente do pulmão. Era uma época em que tuberculose não era sopa. Gente tomava formicida quando sabia que estava tuberculosa. Fui para o Santorinho de Campos de Jordão. Sarei depressa, voltei. Meu irmão Jofre pegou uma tuberculose violenta, foi para o sanatório de Correias e lá morreu. Eu recaí: tinha passado 15 dias sem comer. Fui outra vez para Campos de Jordão. Recaí mais três vezes: tive, ao todo, cinco agressões de tuberculose.
“DEVO MUITO AO FOLHETIM”
“Aí vieram A Mulher sem Pecado e, depois, Vestido de Noiva. Com o sucesso de Vestido de Noiva, fiquei inimigo pessoal de todos os outros autores brasileiros. Passei a escrever coisas que outros assinavam contra outros autores. Eu tinha uma vaidade feroz. Hoje me apazigüei e estou tranqüilo. Posso ser pior que outros autores, mas me sinto diferente. Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos mais jovens: não façam literatice. O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra. Aos 13 anos escrevi: “O crepúsculo era uma apoteose de sangue”. Hoje é difícil eu cair no pecado da literatice.
“O mau gosto é uma das contribuições decisivas do meu teatro. Quando fiz Senhora dos Afogados, a única pessoa que não se horrorizou com o eczema de uma personagem foi Gilberto Freire. Bibi Ferreira, que montou a peça, achava horrível. Com meu teatro, perdeu-se também o sotaque lisboeta. Leopoldo Froés tinha esse sotaque. Chaby Pinheiro, que era portuguesa, tinha menos sotaque lisboeta do que Froés.
“Tenho uma profundíssima admiração por Eugene O Neil. Mas, se eu tiver de reconhecer uma influência, acho que ela é de Dostoievski. Uma influência que quase não se pode chamar de influência, tanto que ninguém diz que ela existe.
“Fernando Montenegro passou oito meses telefonando para mim para eu escrever uma peça. Achei linda a obstinação da “musa sereníssima”. Ela achava que era inútil, mas insistia. Fiquei deslumbrado quando fiz a peça. Estava cumprindo minha palavra. Eu subi no meu próprio conceito quando entreguei à Fernanda o Beijo no Asfalto.
“A Morta Sem Espelho, que escrevi para TV Rio, foi a primeira novela da história das novelas. A Censura, sem querer conhecer o assunto, disse que jamais permitiria uma obra minha às oito da noite. E era uma história de Delly.
“A parte folhetinesca que existe em minha obra me deu plasticidade e segurança técnica. Suzana Flag, o pseudônimo que usei para Meu Destino É Pecar, me equipou como novos recursos técnicos. Devo muito ao folhetim. Dostoievski tem cenas de novela da Rádio Nacional.  
“ACHAVAM QUE ERA UM TARADO”
“O Filme A Falecida, de Leon Hirszmann, mutilou a parte de humor que há na peça. O humor é um dos elementos mais obrigatórios do meu teatro. Meu teatro tem a simultaneidade do patético e do humorístico. Arnaldo Jabor está filmando O Casamento, que é da pesada. Ninguém gostou do romance, a não ser eu. Depois comecei a encontrar tresnoitados e fiquei deslumbradíssimo. É uma das minhas obras mais queridas. Jabor vai enfrentar uma batalha sangrenta.
“No filme A Falecida, Nelson Xavier representava um cafageste carioca dionisíaco como se fosse Laurence Olivier. Eu lhe dizia: “Você está um lorde, um marquês. Você não está na Câmara dos Comuns, mas numa funerária de quinta classe”. Depois ele veio me dizer que eu tinha razão.
“Eu escrevo rápido, a história é começar. Tenho mil peças, milhares de personagens. Nada me falta. É só fazer. Agora, tive problemas de saúde. Eu começava a escrever à meia noite e ia até de manhã. Fiz Vestido de Noiva assim: meio ato num dia, meio ato num outro. Depois reescrevi, ampliando, dando densidade às cenas. Eu nunca dizia que tinha feito tão rápido, se não ia me desmoralizar. Eu dizia que demorava seis meses para escrever uma peça, abismado com meu cinismo.
“Tenho seríssimas dúvidas a respeito do entusiasmo dos meus elencos pelas minhas peças.  O pessoal leva em conta é meu nome. O fato de eu ser conhecido. Minha figura dá publicidade, os jornais abrem espaço para mim. Os elencos concordavam com um espectador e uma manchete de jornal, para os quais eu era um tarado. Cinco atrizes se recusaram a fazer o papel de Toda Nudez Será Castigada, que Cleyde Yáconis interpretou. Eu pensava até em seduzir a provável intérprete com um pagamento extra.
“TODO MUNDO É MÓRBIDO”
“Muita gente me acha mórbido. A crítica paulista acusou Bonitinha, mas Ordinária de morbidez. Disseram também que está ultrapassado o problema da virgindade. Mas será que acham que não é nada uma curra empresada pela própria vítima? A morbidez é uma das dimensões mais humanas do meu teatro. Todo mundo é mórbido.
“O que mata a nova geração de teatro no Brasil é o “caco” (invenção do ator, não pertencente ao texto). Considero isso uma volta à pré-história do teatro. Minhas provações com o “caco” só são comparáveis às de Jô. Se insistirem no “caco”, reduzo meu teatro à literatura  e em vida não deixarei mais que ele seja representado. Neste momento, com a maior seriedade, faço o elogio do diretor burro. O inteligente é o inimigo n 1 do teatro. Falsifica as peças. Acha “caco” criatividade.
“Nosso amigo Millôr Fernandes diz que traduz Shakespeare e melhora. Não ouvi ele dizer a frase, pr isso cito com ressalva. Ninguém tem o direito de pegar um texto alheio e mudar. Contaram a Tenesse Williams que Marlon Brando estava fazendo misérias com Um Bando Chamado Desejo. Tenesse Williams acabou indo ver o espetáculo. Marlon Brand, com um descaramento de ator de fama mundial e que se julga acima de qualquer autor, levou Williams dizer: “o que Marlon Brando diz por conta própria é mais criativo do que meu texto”. É óbvio que ele estava fazendo deboche. Só a título de piada se admite a observação. Imaginem Brailowsky misturando um noturno de Chopin com “Mamãe, eu quero é mamar...”. Os diretores inteligentes, quando escrevem no programa, são filósofos alemães, de uma total impenetrabilidade.
“Fui encerrar, na escola de Comunicações e Artes da USP, um curso de Pós-Graduação sobre o meu teatro e depois li os trabalhos dos alunos. Fiquei besta. Nunca vi nada mais profundo, de não se entender uma frase. Quando pensei em fazer uma peça, era o sujeito mais obscuro do Rio de Janeiro. Tinha uma miséria de Raskolnikoff, embora sem intenção homicida. Escrevi A Mulher Sem Pecado em 1939. Só a maturidade me permite confessar que, até fazer Vestido de Noiva. Só tinha lido uma peça: Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Na infância, vi Alda Garrido em burletas de Freire Junior. E isso embora tivesse uma monstruosa leitura literária. Pouca gente no Brasil conhece romance como eu conheço. Como eu tinha problemas econômicos, pensei que se escrevesse uma chanchada ia ganhar dinheiro. Comecei A Mulher Sem Pecado. No meio da primeira página, já era uma peça tenebrosa e foi assim até o fim.
“Diz-se que Ziembinski remanejou Vestido de Noiva durante os ensaios. Afirma a Luiza Barreto Leite que o Ziembinski reescreveu a peça comigo. Esta senhora mentiu de maneira mais deslavada. Ziembinski deu de fato uma contribuição: a expressão “pois é”. Como polonês, ela achava “pois é”uma coisa linda. Mas ele queria que eu terminasse a peça com a morte da heroína. Acabei dobrando Ziembinski.
“TEATRO É UM ABSCESSO”
“Vestido de Noiva teve o tipo de sucesso que cretiniza um autor. Parti para uma coisa mais salvadora, para Álbum de Família, que é um anti-Vestido de Noiva. O teatro é mesmo dilacerante, um abcesso. Teatro não ter que ser bombom com licor. Tem que humilhar, ofender, agredir o espectador. Quase fiz uma peça onde o segundo ato todo era um ato sexual com variações delirantes. Lamentavelmente não fiz a peça.
“É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda, acho mais importante a hediondez. O ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez. Eu me proponho a reconhecer a hediondez.
“Para glória e alegria profunda, tenho uma massa de desconhecidos íntimos. Quando me reconhecem na rua, fico satisfeitíssimo. Um dia atropelei uma velhinha, que, rodopiando, quase se despetalou. Peguei-a e ela falou: “Nelson Rodrigues” Fiquei maravilhado.
“Senhora dos Afogados, Anjo Negro, Álbum de Família, Doretéia são peças que não tiveram ainda a sua vez. Vestido de Noiva atrapalhou pra burro. As pessoas admiram Vestido de Noiva e ficam quites com a inteligência e o bom gosto. Essas outras peças eram problemas críticos. O crítico não quer nada com problema. Minha amiga pessoal Bárbara Heliodora escreve há 30 anos sobre Shakespeare porque há uma biblioteca sobre ele e se faz outra, tirada da anterior. Assim sucede na vida intelectual do país. Acham Nelson Rodrigues um brasileiro que vem escrever obscenidades, dizer palavrões. Nos primeiros 15 anos não escrevi um palavrão e todo o mundo ia para casa certo de ter ouvido 300.
“SOU TUDO, MENOS IMORAL”
“A linguagem é a minha maior contribuição ao teatro brasileiro. Quando levaram A Falecida no Municipal do Rio, eu passava pelo corredor num intervalo e ouvi: “Mas falar me futebol no Municipal?” Era uma desolação sincera e honesta. Eu estuprara o Municipal com futebol. Isso era o teatro, a minha linguagem. Manuel Bandeira leu Vestido de Noiva e disse: “Me surpreende e agrada que seu teatro não tenha literatice”. Vestido de Noiva não faz a menor concessão à subliteratura.
“Se a evidência quer dizer alguma coisa, afirmo que sou um ator moralista. Posso ser tudo na minha vida, como autor ou como homem, menos amoral. Se porventura muitos não perceberam isso, lamento a cegueira profunda e irreversível. Eu me lembro de Dostoievski, que diz: “Se Deus não existe, tudo é permitido” Eu acredito em Deus.
“Eu me considero um homem absolutamente solitário, embora julgue um amigo, um acontecimento. Amigo é o essencial. E é duro encontrar um amigo. Por isso eu me afago tanto com o desconhecido íntimo. Ele está praticando um ato de amor.”
Extraído do site: http://www.nelsonrodrigues.com.br

Anjo Negro - Crítica




Jornal Correio da Manhã  11/04/1948
Violeta Ribeiro

Naquele mesmo palco onde viveu durante várias noites o príncipe dinarmaquês, "o louco por astúcia", é exibida agora a tragédia de um jovem dramaturgo louco em substância.
Justificativa curiosa bailava em torno do último original de Nelson Rodrigues, curiosidade ateada pela propaganda dos fanáticos amigos do autor e alimentada através da imprensa. A incontestável originalidade de "Vestido de Noiva", a curiosa encenação de "A Mulher sem Pecado", as controvérsias em torno de "Álbum de Família", e finalmente a interdição de "Anjo Negro" pela censura, deram a Nelson Rodrigues uma popularidade comparável à que surge em torno da malograda "Aracy Abelha"...
Há crimes e crimes, há peças e peças, mas se há crimes que são verdadeiras peças, há peças que são verdadeiros crimes.
A comparação teatral organizou-se para encenar a produção de Nelson Rodrigues. A censura, com o intuito de extinguir a fogueira que prometia incinerar a moralidade pública, lançou um jato direto no braseiro, sob a forma de claríssimo ofício, onde com a inteligência, cultura e zelo pelo cargo que tão bem ocupa, o Dr. Melo Barreto expôs os motivos que levaram a censura a proibir a criação do Sr. Nelson Rodrigues.
Quem teve o ensejo de ter o citado ofício, elaborado dentro dos mais apurados conhecimentos de literatura, de teatro, de Código Penal e de moral, e quem conheceu o original "Anjo Negro" antes de ser encenado, não só compreende e justifica sua interdição como se orgulha ainda por ver que, apesar de tudo, há no Brasil uma entidade que cumpre com precípua finalidade, a de moralizar os espetáculos públicos resguardando a sociedade brasileira, pois a imoralidade cristalina produziu o efeito funesto de um jato de matéria inflamável sobre os adendos da "arte teatral". O fogo avolumou-se, as chamas alvoroçadas começaram a subir, as labaredas atingiram os críticos, e entre estes o do "Correio da Manhã", que arderam em defesa da liberdade de criação, e tais proporções tomou o incêndio que as chamas subiram... subiram... subiram... até atingirem a justiça.
A vitória do "Anjo Negro" sobre a censura daria ao autor muito maior popularidade que seus sucessos anteriores. Aí está a questão...
Seria o dramaturgo capaz de atrair multidões para assistir à sua tragédia? Não! Então ele usa de esperteza, faz barulho, faz escândalo, faz-se "louco". A maioria dos que vão presentemente ao Fênix, vão para julgar a censura. Outros vão para julgar a própria justiça; que contrariando a censura permite o espetáculo. Há os que vão, pobres filhos de Adão, saborear o fruto proibido, outros enfim vão para julgar a peça e seu autor.
Vamos pois, ao julgamento da peça em sua essência. Para Lope de Vega, "um tablado; dois atores, uma paixão, bastam para fazer um drama". Para o Sr. Nelson Rodrigues, uma dúzia de crimes ainda não basta... Precisa sempre de um "velório"... e precisa ainda que o Sr. Ziembinski impressione a platéia com o surrealismo de sua encenação.
Grande qualidade possui o original de Nelson Rodrigues. Mantém a atenção em suspenso durante todo o desenrolar da tragédia. O espectador é tomado de surpresa, de assombro, de estupor. Isto tudo, porém, não é provocado pelos seus personagens. Eles não conseguem surpreender, pois se nem chegam a convencer... Os intérpretes da tragédia são a tal ponto dotados de monstruosidades, que não vivem os seus papéis, mas são amestrados repetentes de personagens que só tiveram vida dentro do cérebro criador do Sr. Nelson Rodrigues.
E a surpresa que se apodera do expectador não é diante do drama, mas da capacidade insuperável de o autor acumular tanta obscenidade em tão curto espaço de tempo. E o assombro que invade o espectador não resulta de nenhuma emoção transmitida pelo texto, mas sim do espanto em ver que há quem chame aquilo de "obra prima", de "Arte".
Que espécie de prazer ou interesse artístico há em se assistir a um suceder de cenas mórbidas, apesar de serem, por vezes, descritas como poesia? Nas verdadeiras tragédias os heróis sofrem ou fazem sofrer. São seres humanos com vícios, são criminosos, mas são seres humanos. A par do crime há o castigo, há o remorso, há qualquer conclusão moral. Na tragédia, porém, do "maior dramaturgo contemporâneo", os personagens não têm feições humanas.
Exageradamente imoral no assunto, é profundamente imoral quanto ao epílogo. Há por certo grandes e imortais tragédias baseadas em crimes. Nenhuma, porém, será maior que esta em quantidade de crimes.
A obra teatral só deve ser julgada depois de seu batismo cênico. "Quem não possui a faculdade de despojar-se de suas simpatias ou antipatias pessoais para julgar um autor, não pode ser crítico". A crítica ao autor de "Anjo Negro" vem sendo feita por seus fanáticos amigos, excelentes jornalistas. Serão eles tão críticos quanto amigos?
Quem não quer admitir que o teatro está submetido a leis eternas, não peca senão por ignorância ou má fé e justamente por isto torna inútil qualquer discussão. Os autores incapazes de construir suas peças dentro da coerência e da harmonia, corruptores que são do verdadeiro teatro, suprem sua deficiência criadora por um malabarismo astucioso. Já que não podem comover, contentam-se em chocar. Já que não podem justificar o novo gênero teatral por eles inaugurado, arbitrariamente colocam-se acima de tudo o que já se tem feito em teatro, batizam-no de super-teatro, quando nem sequer chega a ser teatro. Confundem arte e licenciosidade!
Afastei-me do "Anjo Negro", voltemos a ele. Outra grande qualidade tem a peça do Sr. Nelson Rodrigues... a colaboração do Sr. Ziembinski, o mestre da encenação. Basta que o autor indique "que se deve tirar o maior rendimento plástico de determinada cena..." (da qual pelo texto ele não conseguiria rendimento algum) e abrem-se as portas ao arrojado gênio criador do artista polonês. Realmente o Sr. Ziembinski se desincumbe galhardamente de sua missão e oferece ao público um espetáculo.
Outra qualidade tem a peça do Sr. Nelson Rodrigues, o aparecimento da grande artista dramática Ítala Fausta - uma armadilha para assegurar o sucesso. Esta notável artista brasileira tem o seu público, que vai aplaudi-la incondicionalmente. Quando a platéia prorrompe em aplausos ao ver a tia praguejar, aplaude a Sra. Itália Fausta, mas são migalhas de glória atiradas ao "maior dramaturgo brasileiro".
"O teatro não é só uma casa de espetáculos, mas uma escola de ensino; seu fim, não é só divertir e amenizar o espírito, mas pelo exemplo de suas lições, educar e moralizar a alma do público".
Que dizer pois, sob este aspecto, a respeito de "Anjo Negro"?
O assunto da peça é de fundo sexual, como sexuais são todos os temas do autor. Mas ele não consegue desligar sexo e crime. Em "Anjo Negro", porém, o autor não se satisfaz com sexo e crime, e baseia o drama no problema racial e isto de maneira tão absurda e inverossímil que surpreende ao ariano mais aterrado a preconceitos raciais. E no Brasil não pode haver clima que justifique a concepção do autor, salvo se tem em vista lançar um ponto de partida para uma luta de raça com intuito de engendrar ódios e desordens sociais. Certamente por isso é o seu gênio qualificado de "revolucionário". Mas se o teatro é uma transposição da vida, o valor da obra teatral está na medida da dose de verdade e de humanidade que a mesma contém.
Ora, a peça em questão prima pelo absurdo e pela inverossimilhança que se irmanam por vezes ao ridículo, apesar de certos críticos chamarem aquele emaranhado de monstruosidades a maior obra prima do teatro brasileiro. Realmente no gênero promete ser a maior!
Não sei qual será doravante o destino da censura, ou se este órgão deverá desfazer-se em um nó, uma vez que não pode ser tocado. É verdade e é pena que seja verdade. Mas meia dúzia de escritores resolveu acreditar que a arte purifica a imortalidade... Logo agora que se começava a fazer teatro no Brasil... Que dirá o Teatro Experimental do Negro, composto de elementos de real valor ante a afronta de se exibir algo que é um atentado à dignidade humana de sua raça?
É simplesmente lamentável que a censura tenha sido tão aviltantemente ofendida. Agiu com justiça dentro de suas atribuições, não importa que a maioria diga o contrário.
E quando um indivíduo assiste à demolição do que de bom há no seu país, lembra-se da frase do príncipe dinamarquês:
"Não vai tudo direito... nem pode acabar bem..."
E o eco responde nas galerias do Fênix, testemunhas recentes de espetáculos que realmente seduziram e comoveram:
"Não é só no reino da Dinamarca que há algo de podre".
Por enquanto é só... E vós que me ledes direis com os vossos botões... O que ela tem é mágoa porque não encontra quem encene as suas peças... Ah!... Se eu tivesse o meu Ziembinski... O resto... é silêncio...

Extraído do site: http://www.nelsonrodrigues.com.br